Como conquistar clientes nas Favelas
Você já pensou em vender o seu produto para os moradores das favelas? Se ainda lhe faltam motivos para enxergá-los como consumidores de peso, aí vão alguns números. Em 2013, eles movimentaram R$ 63,3 bilhões, metade deles possui emprego formal (51%) e a renda média nas comunidades brasileiras é de R$ 965. Além disso, cerca de 3 milhões têm cartão de crédito, sendo que mais da metade (59%) afirma já ter emprestado o cartão para alguém usar.
Os dados são resultado da pesquisa Radiografia das Favelas Brasileiras, o maior estudo já realizado sobre as favelas no país, feito por Renato Meirelles, presidente do Data Popular, e Celso Athayde, presidente da Favela Holding e criador da Central Única das Favelas (CUFA). O trabalho virou um livro, que será lançado no próximo dia 7, na Livraria da Vila, no Shopping JK, em São Paulo.
Em entrevista à Época NEGÓCIOS, Meirelles contou como foi percorrer as principais favelas do Brasil e revelou o perfil do morador dessas comunidades – como consumidor, trabalhador e empreendedor. “Se o emprego formal fez a favela chegar onde chegou, é o empreendedorismo que vai fazer a favela ir adiante”, ele diz.
Como e quando surgiu a ideia do livro?
A ideia de fazer o livro surgiu em fevereiro do ano passado junto com a ideia de criar um instituto de pesquisa focado em favelas [o Data Favela, uma sociedade entre Meirelles e Athayde]. Quando eu conheci o Celso Athayde, que escreveu o livro comigo, nós pensamos em criar o instituto, mas a favela precisava ser protagonista disso. Não queríamos um monte de gente do asfalto discutindo a favela. A nossa ideia era favela e asfalto juntos tentando entender o fenômeno de transformação que acontece dentro da comunidade.
Com a ideia na cabeça, quais foram os primeiros passos?
A primeira coisa que a gente fez foi levantar os grandes números sobre favelas no Brasil. Nós chamamos esse estudo de Radiografia das Favelas Brasileiras. Nós descobrimos que existem mais de 12 milhões de pessoas que moram nas favelas, que ano passado movimentaram R$ 63,3 bilhões. Se existisse um Estado chamado Favela Brasileira, ele seria o quinto maior do Brasil. Ia ter mais favelado que gaúcho no país. Depois, nós decidimos fazer e lançar o estudo em grande estilo, exatamente para construir pontes entre o asfalto e a favela. O que nós fizemos? Nós alugamos o Copacabana Palace para o lançamento do estudo, em 4 de novembro de 2013. Foi um dia inteiro de muito debate e discussão. Com o resultado da pesquisa e com o conteúdo dos debates, nós escrevemos o livro Um País Chamado Favela.
Qual foi a metodologia escolhida para o estudo?
Foi quantitativa e qualitativa. Do ponto de vista da metodologia quantitativa, nós estivemos em 63 favelas em todo o Brasil. Nós ouvimos dois mil moradores de favelas. Para a metodologia qualitativa, nós passamos um tempo morando na comunidade para saber o que as pessoas falam sobre o que está por trás dos números. Para entender as pequenas nuances do que é a vida em comunidade.
Quantas pessoas estavam envolvidas no projeto inteiro?
Mais de cem pessoas.
Qual é o perfil das pessoas que moram nas favelas brasileiras?
Do ponto de vista sóciodemográfico, nós encontramos nas favelas 65% de negros, o que representa uma porcentagem maior do que a da população brasileira (52%). Encontramos uma população quatro anos mais jovem do que a média da população e um número maior de mulheres chefiando famílias. É impressionante o protagonismo que a mulher tem dentro da favela e muitas vezes isso não é visto pelo grande público. A gente tem uma mulher que trabalha mais do que a mulher que está no asfalto, que começou a ganhar a própria renda e colocou o marido para passear falando que não aguenta mais sustentar vagabundo. A mulher é definitivamente a grande referência nas famílias das favelas.
Do ponto de vista do comportamento, nós encontramos um número grande de pessoas que tinham tudo para não ser felizes, mas são. 94% dos moradores de favelas são felizes e dois terços dos moradores não sairiam da favela nem se os seus salários dobrassem. Por duas razões: uma econômica e uma social. A razão econômica tem haver com o ecossistema criado dentro da favela no qual todo mundo ajuda todo mundo. Na favela, eles podem comprar fiado na padaria e pagar só no final do mês, por exemplo. Quando um morador sai para trabalhar, pode deixar o filho com o vizinho. Eu pergunto para os leitores do site de Época NEGÓCIOS quantos poderiam deixar o filho com o vizinho. Na favela, eles rateiam o ponto de wi-fi. Esse ecossistema torna a vida lá mais barata.
O segundo motivo é emocional: eles têm um lastro dentro da comunidade. Lá, todo mundo se conhece. Mais de 70% dos moradores de favelas receberam o vizinho em casa na última semana.
Nas favelas, 26% dos moradores têm contas atrasadas, dois em cada dez estão com uma conta atrasada há mais de 30 dias e 23% possuem o nome sujo. Como você avalia a inadimplência nas comunidades?
O que a gente vê é que o crédito ainda é muito baixo dentro da favela, porque a bancarização ainda é muito baixa. As instituições financeiras têm dificuldade em dar crédito aos moradores de favela. Então, se ele não tem crédito, ele não consegue ter muita conta e com isso ele passa a ter que pagar as suas contas mais à vista. Eles possuem cartões de crédito, mas em um nível proporcionalmente bem mais baixo do que no asfalto.
Ao fazer o livro, quais foram os dados e histórias mais interessantes que vocês encontraram?
O dado da felicidade e o de não ter vontade de sair da favela são dados muito fortes. A dificuldade que eles têm de pagar contas dentro da favela também me impressionou. Por não ter banco dentro da favela, muitos deles precisam ir muito longe para pagar uma conta ou comprar um eletrodoméstico. Não tem nada perto. Outra coisa que me chocou é o quanto que eles admitem e contam histórias sobre o preconceito que o asfalto tem com a favela. O quanto que eles precisaram mentir o seu endereço para se dar bem em uma entrevista de emprego ou abrir um crediário. O quanto que os jovens da favela tomam mais batidas policiais do que os jovens do asfalto.
Se eles não desejam abandonar a favela, quais são os seus maiores desejos?
Boa parte dos desejos deles para o futuro tem relação com a educação, seja a do filho ou a deles. Ou seja, o primeiro sonho deles é relacionado a um serviço e não a um produto. Um desejo interessante, que ficaria em segundo lugar na lista, é a forma que os moradores da favela enxergam a tecnologia como um instrumento de ascensão social.
Se o segundo maior desejo deles é ter acesso a tecnologia, como são esses itens em suas casas? Vocês checaram se eles tinham aparelhos de DVD, computador, carro?
Sim, 86% possuem aparelhos de DVD, 56% possuem TV de tela fina, 54% possuem computador e 27% têm smartphone. Carro tem pouco – não há espaços nas ruas.
Como é o morador da favela como consumidor?
É um consumidor mais crítico, porque ele não pode errar. O custo do erro é muito grande na favela. Ele prefere pagar um pouco mais em uma marca que ele já conhece e confie do que pagar por um produto vagabundo e baratinho.
Em sua opinião, as empresas deveriam se preocupar mais com esse tipo de consumidor?
Sim. Eu não tenho dúvida nenhuma. Para se ter uma noção, a favela consome mais do que o PIB da Bolívia ou que quase a soma do consumo da Bolívia e do Paraguai. É um mercado perto de região metropolitana, próximo a zonas de distribuição, e que possui um consumidor que busca produtos de qualidade e que está ampliando o seu portfólio de produtos.
Como as empresas devem se comunicar com os moradores das favelas? Se você pudesse dar dicas aos empresários, quais seriam?
Em primeiro lugar, as empresas precisam entender que na favela ninguém quer ser catequizado. As pessoas querem ser tratadas com respeito, de igual para igual. Tem que entender que nas favelas as pessoas querem ter produtos com melhor custo benefício e, dependendo da categoria, elas buscam produtos de marca para reduzirem o preconceito que muitas vezes encontram no asfalto. Roupas de marca na favela têm o objetivo de diminuir o número de vezes que eles sofrem batidas policias. Não é só para ostentar.
A primeira dica é: trate com respeito. Em segundo lugar: nada de produto vagabundo e baratinho. E, por fim, entenda que na favela as pessoas compram pela relação custo/benefício. Se tem uma coisa que a gente aprendeu é: produto vagabundo e baratinho não conquista os moradores da favela.
Vocês dizem que foi o aumento do emprego que mudou a favela. Como ela era antes e como ela é agora?
Antes a favela era apenas o território dos desbancarizados, dos trabalhadores informais, dos camelôs. Quando o mercado de trabalho cresceu efetivamente e o Brasil chegou ao pleno emprego, os moradores de favelas passaram a ser absorvidos pelos empregos formais. A escolaridade média também cresceu. Eles foram os principais beneficiados do crescimento do Brasil nos últimos dez anos. A renda dos 25% mais ricos cresceu 12%, já dos 25% mais pobres cresceu 45%. Os historicamente mais pobres viram a sua renda crescer mais do que a do restante da população brasileira. A classe C, por exemplo, cresceu mais na favela do que no asfalto.
Como é o morador da favela como trabalhador? Onde a maioria trabalha?
Um conjunto grande de moradores ainda trabalha nas funções mais básicas. Mulheres como empregadas domésticas e homens na construção civil. Na nossa pesquisa, nós identificamos um crescimento gigantesco de cargos como telemarketing, vendedores de lojas, secretárias e um sentimento crescente de empreendedorismo. Se o emprego formal fez a favela chegar onde chegou, é o empreendedorismo que vai fazer a favela ir adiante.
Como eles empreendem?
O empreendedorismo feminino cresce em duas vertentes. Elas cozinham para fora e criam seus pequenos bufês na comunidade ou abrem seus próprios salões de beleza. Para os homens, o empreendedorismo está relacionado ao comércio em geral, como padarias. A grande maioria tem seu negócio dentro da comunidade. 65% dos moradores querem empreender dentro da favela porque acreditam que a comunidade está crescendo mais que o asfalto. Isso é fantástico, porque você começa a ter um dinheiro que fica circulando na própria favela.
Eles têm acesso ao ensino superior?
Ainda muito pouco, mas isso tem crescido. O analfabetismo caiu pela metade nos últimos dez anos. O detalhe interessante é que 73% dos jovens da favela estudaram mais que os seus pais. Essa nova geração é bem mais escolarizada.
Eles são classe C e D?
Hoje, 65% dos moradores de favelas pertencem à classe média, ou classe C. Em 2003, eles representavam 33%. Hoje, 3% da favela é classe A e B, o restante é D e E. As classes mais altas são os pequenos empreendedores da favela, que a renda foi crescendo e hoje ganham mais de R$ 20 mil. O negócio deles foi crescendo junto com a favela.
Vi que a ideia de vocês era desmitificar os estereótipos da favela, que sugerem apenas violência e drogas. Vocês também pesquisaram algo sobre a relação deles com esses assuntos?
Sim, as pessoas dizem que as dificuldades ligadas às drogas e à violência dentro da favela estão menores, mas ainda estão presentes. 73% consideram a favela onde vivem violenta, mas 44% acham que irá ficar menos violenta no próximo ano.
O que significa dizer que a dinâmica econômica das favelas está em reconstrução, um conceito que vocês defendem no livro?
É essa vontade de empreender dentro da favela. Essa vontade de ter, em paralelo ao emprego formal, o negócio próprio. Essa geração que é mais escolarizada do que os pais. Tudo isso faz com que a comunidade tenha uma perspectiva de crescimento econômico muito maior do que no passado.
O Celso Athayde afirmou que uma das percepções que vocês tiveram era a de que os moradores das favelas estavam otimistas, devido ao aumento da renda e da geração de emprego. Com a economia brasileira crescendo menos, você acredita que esse otimismo pode mudar?
Olha, nós realmente estamos em um momento em que a economia está crescendo menos do que estava no passado, mas o pouco que cresce, cresce nas classes C e D. Essas classes estão mais blindadas. 25% dos moradores de favelas recebem o Bolsa Família, por exemplo, então eles possuem uma renda fixa de algum jeito.
Fonte: Época Negócios