Para cada problema, uma forma de pensar

Claro que relaxar não é a única atitude possível para melhorar a criatividade. No livro O cérebro criativo, recém-lançado em português, a psicóloga americana Shelley Carson, da Universidade Harvard, elenca vários modos de funcionamento do cérebro e sugere inclusive alguns exercícios para estimular insights. Mas recomenda que primeiro entendamos qual é o problema que queremos resolver.
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Pessoas criativas entram em estados cerebrais de baixa frequência elétrica com mais facilidade. Mas isso pode ser treinado

: : Primeiro, há os problemas razoáveis, ou lógicos. São questões com um único ponto final como solução. Equilibrar receita e custos, por exemplo, ou montar um brinquedo a partir do manual. Para problemas assim, convém usar o método lógico.
: : Um segundo tipo de problema é o não razoável. Ele também tem um único ponto final como solução, mas não existe um mapa para chegar lá. Você tipicamente vai precisar de um insight. As charadas são um bom exemplo.
: : Finalmente, há os problemas mal estruturados, ou abertos. São questões que têm mais de uma solução possível. Escrever uma música, por exemplo. Ou melhorar a educação infantil. Para estes, você precisa de um tipo de pensamento que os especialistas chamam de divergente – capaz de gerar muitas ideias. Ele é o oposto do convergente, ótimo em conclusões.
Para a maioria dos grandes problemas desafiadores de hoje nas empresas, pelo menos em algum momento será necessário ter um insight. Por isso selecionamos algumas recomendações, extraídas da fronteira entre a ciência e a experiência de gente reconhecidamente criativa.
1. O BOM HUMOR AJUDA
É quase intuitivo que um ambiente descontraído produza mais ideias que um lugar carrancudo. Mas, como a maioria das ideias é pura brincadeira, há dúvidas de que a descontração realmente valha a pena. Aí entra a ciência. Descobertas recentes levam a crer que sim, a brincadeira traz resultados. Lehrer cita um estudo feito com dois grupos de crianças em idade pré-escolar – um de um colégio onde o método pedagógico era baseado na diversão; outro que estudava em um sistema de ensino convencional, com ênfase nos exercícios de matemática e fonética. “Depois de um ano, as crianças da escola que priorizava a diversão mostraram melhor desempenho em habilidades cognitivas essenciais, como memorização, foco e autocontrole.” Quando o cérebro está se divertindo, diz Lehrer, abre-se a porta para abordagens inusitadas dos problemas.
2. O MAU HUMOR É ESSENCIAL
O bom humor pode ser um bom acompanhante, mas é o mau humor quem geralmente compra a passagem para a viagem criativa. Não é difícil entender. Só faz sentido usar a criatividade se for para mudar algo. E só faz sentido mudar algo se a pessoa estiver insatisfeita com o modo como as coisas estão. “O modo cerebral transformar”, diz Shelley, “é basicamente um estado em que seus sentimentos são levemente negativos e seus pensamentos são autorreferenciais”.
Ao percorrer os caminhos feitos pelo cérebro para solucionar um problema, cientistas descobriram que a frustração surgida de um grande esforço é uma etapa essencial para o processo criativo. Ao estudar as reações de pessoas colocadas diante de questões de lógica, o psicólogo Mark Beeman notou um padrão na forma como surgia a solução. Ela “saltava” de repente, após as pessoas terem feito um grande esforço sem chegar a lugar nenhum. A razão disso é que, neste momento, desarma-se o hemisfério esquerdo do cérebro, área responsável por uma leitura literal das situações. Então prevalece o lado direito, onde ruminamos questões abstratas por meio de analogias e associações. “O mundo é tão complexo que o cérebro tem de processar tudo das duas formas ao mesmo tempo”, diz Beeman. Em outras palavras, enquanto o hemisfério esquerdo nos deixa “ver” uma árvore, cabe ao direito nos ajudar a “entender” a floresta. Porém, para ter insights, a porção floresta – das analogias – é mais importante.
“Toda jornada criativa começa com um desapontamento causado por um impasse”, afirma Lehrer. No mundo das artes, um dos melhores exemplos está na trajetória do cantor e compositor americano Bob Dylan. Em 1965, ele fazia um sucesso assombroso, porém vivia uma crise atroz. Não gostava do próprio trabalho. Em meio a turnês e paparicos de fãs e jornalistas, decidiu chutar tudo para o alto. Comunicou a seu empresário que iria abandonar a música e fugiu para uma cabana em Woodstock, onde pretendia iniciar uma carreira como escritor. Nem levou sua guitarra. Neste momento, sozinho e angustiado, Dylan foi assaltado por um novo ímpeto criativo. Começou a rabiscar Like a rolling stone, composição que marcaria um novo patamar em sua carreira e é, até hoje, uma das canções mais reproduzidas pelo mundo. Ele inaugurava aí um estilo que influenciou gerações de músicos, incluindo os Beatles.
3. O PODER DA MISTURA
Há três anos, a Tetra Pak demorava oito horas para carregar seus caminhões com as embalagens que vende para outras indústrias. Hoje, o serviço é feito em duas horas. O ganho de produtividade surgiu a partir de ideias de um time dos próprios funcionários – mas nenhum deles do departamento que cuida dessa logística. “Nós percebemos que quem está dentro do problema já se acostumou tanto com ele que sofre para encontrar uma solução”, diz Vladimir Bosio, diretor da unidade de Monte Mor (SP) da Tetra Pak. “Quem vem de fora consegue apontar rapidamente os erros.”
Na Embraer, esse olhar “estrangeiro” está no cerne do negócio. A companhia só começa a construir uma aeronave depois de ouvir clientes e fornecedores. Além de usar esses estímulos externos, a Embraer estabeleceu outra rotina para estimular a inovação: duas vezes ao mês, 300 funcionários passam uma semana dedicados a encontrar formas de aprimorar um processo. “É um grande estímulo à criatividade, porque as pessoas sabem que podem virar os processos de cabeça para baixo, se isso resultar em alguma melhoria”, diz José Ricardo Vilela, gerente de qualidade corporativa.
Talvez o melhor exemplo do poder das ideias de fora seja a experiência do laboratório Eli Lilly. No final dos anos 90, Alpheus Bingham era o vice-presidente responsável por pesquisa na companhia. A empresa gastava milhões de dólares em várias linhas de pesquisa, sem resultados à altura. Bingham teve então uma ideia: tornar alguns problemas públicos, via internet. Criou um site chamado InnoCentive, prometendo recompensas a quem os resolvesse. No começo, nada aconteceu. Mas, um mês depois de lançado, o site recebeu a primeira resposta. Depois outra. E outra.
Deu tão certo que a InnoCentive virou uma empresa separada, que vende soluções para várias companhias. E por que dá tão certo? Em geral, são cientistas de outras áreas que conseguem resolver os problemas impossíveis. No caso da Eli Lilly, biólogos tinham uma visão diferente da dos químicos da empresa. Eram especialistas com conhecimento próximo o suficiente para entender o problema, mas afastado o bastante para não ficar enredados nas práticas tradicionais.
4. O VALOR DO VAZIO
Um dos paradoxos da inovação é que, para ser eficiente, você precisa cultivar a ineficiência. Para entender como isso funciona, pense no seu carro. Quando você aprendeu a dirigir, prestava atenção a cada movimento – da marcha a ser trocada ao carro no retrovisor. Aos poucos, os procedimentos ficaram automáticos. Viraram hábitos. Graças aos hábitos, podemos concentrar nossa atenção nos problemas novos. Eles nos tornam mais eficientes. Mas, ao mesmo tempo, tolhem nossa percepção. “Somos tão eficientes em nossa rotina que automaticamente pré-classificamos os dados à nossa volta como irrelevantes e nunca os notamos”, diz Shelley. “A inibição cognitiva aumenta a eficiência de nossa tarefa.”
O problema é que ficamos mais eficientes na tarefa que já conhecemos. E a inovação vem do que não conhecemos. Para voltar a perceber o que deliberadamente aprendemos a ignorar, Shelley recomenda que ponhamos o cérebro no modo absorver. É um estágio em que a atividade elétrica do cérebro é menor, com ondas de maior amplitude (as ondas alfa). Pesquisas indicam que “pessoas mais criativas entram em estados cerebrais de baixa frequência mais facilmente do que pessoas menos criativas”, diz Shelley.
Isso pode ser treinado. É o que faz Márcio Ballas. Treina duro para deixar a cabeça vazia, bem vazia. Pode parecer esquisito, mas é assim que começa seu processo de criação como improvisador. “Você precisa não pensar em nada. A melhor forma de fazer isso é focar apenas no que está acontecendo aqui e agora.” Quando se consegue isso é possível partir para o segundo passo: a escuta periférica. Ficar ligado em cada movimento, cada palavra, cada gesto dos colegas é fundamental para perceber a hora de interagir, de fazer uma piada. Agora, nada disso vai funcionar se outro mecanismo mental não for acionado: o da aceitação. “O improviso só é bem-sucedido se você consegue não julgar o outro. Tem de aceitar a ideia que lhe deram e viajar”, diz Ballas.
5. ESTAR PREPARADO
No processo de lapidar uma ideia, após atravessar as primeiras barreiras do processo criativo, o cérebro ainda precisa contar com uma dose de sorte. Não basta a bola chegar livre na boca do gol: é preciso que o jogador esteja na área. O escritor americano Philip Roth, um dos mais celebrados do mundo, é paranoico em relação a não perder ideias. Sem acesso a telefone ou internet, Roth passa o dia escrevendo e, não raro, atravessa a noite burilando seus personagens. “Se acordo às 2h e uma ideia surge, acendo a luz e escrevo no quarto”, disse ele à revista americana The New Yorker. Para capturar ideias a qualquer momento, ele deixa diversas folhinhas amarelas espalhadas pela casa. “Vivo de plantão. Sou como um médico e este é o pronto-socorro. Estou na emergência.”
6. ESTAR NO AMBIENTE CERTO
Quando criança, o estilista paulistano Pedro Lourenço implicou com o uniforme imposto pela escola aos estudantes. Teve, então, a ideia de reestilizar a roupa colocando um pouco do seu jeito no modelito. Os pais, os também estilistas Reinaldo Lourenço e Glória Coelho, não só o incentivaram, como foram junto escolher o tecido. Lourenço, hoje com 21 anos, já desfilou suas coleções por todas as principais semanas de moda internacionais. Sua história é um exemplo de como o ambiente pode estimular a criatividade. No Rio de Janeiro dos anos 60, compositores como João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes eram o centro das atenções de um grupo que se encontrava com frequência para fazer experimentações musicais. Ali se formaram jovens talentos como Chico Buarque, Nara Leão e Carlos Lyra.
Este é, em suma, o poder das grandes cidades, de acordo com pesquisas dos físicos Geoffrey West e Luis Bettencourt. Pessoas que vivem nas metrópoles têm acesso a uma atmosfera rica em experiências e conexões, portanto muito propícia ao autodesenvolvimento. Segundo eles, o morador de uma cidade com 1 milhão de habitantes gera, em média, 15% mais patentes e tem salário 15% maior que a pessoa que vive num lugar com metade da população.
7. ENCONTRAR OS LIMITES
Outro paradoxo da criatividade é que ela precisa de limites. Basicamente, porque tem muito mais valor uma criação que ultrapassa as regras do que uma que apenas as desconhece. Um exemplo é o trabalho dos poetas. Eles se debatem com regras que eles próprios se impõem, de métrica e sonoridade.
Nas empresas, os projetos também precisam de parâmetros. Sem eles, como saber por onde começar? Até na dança é assim. Quando Rodrigo Pederneiras, coreógrafo do Grupo Corpo, convidou Tom Zé para compor a trilha sonora do balé Santagustin, fez somente um pedido: divirta-se. O músico baiano não gostou muito da conversa. Queria um ponto de partida. “Criar assim do nada é muito complicado”, disse. Pederneiras o presenteou com uma restrição. A trilha deveria ter entre 45 e 50 minutos. Não foi suficiente para facilitar a vida de Tom Zé. Já a sua ficou uma beleza. “O meu trabalho precisa da música para acontecer. Ouvindo a trilha eu penso num tema para o espetáculo e começo a transformar ideias em movimento.”
8. NEGAR OS LIMITES
Um trabalho criativo tem sempre algo de violento. Algum limite terá de ser rompido. É por isso que o premiado ficcionista português António Lobo Antunes gosta de projetos que, ao menos no início, parecem estar muito além da sua capacidade de entrega. “Só vale a pena começarmos um romance quando temos a certeza de que não somos capazes de o fazer”, disse ele numa apresentação na Feira Literária de Paraty. Mirar num objetivo tão acima das próprias capacidades é um meio de acionar recursos e um repertório que nem sabemos que possuímos.
O consultor de empresas Oscar Motomura, especialista em inovação, tem a sua versão do método de Lobo Antunes. Uma de suas provocações usuais é perguntar “quais as equações impossíveis que vocês querem resolver”. Algo parecido com isso se tornou rotina na Embraco, fabricante de equipamentos de refrigeração: o processo de inovação começa sempre com metas ambiciosas. A empresa une pesquisas, estudos e conhecimento empírico para imaginar como será o mundo em dez anos. A partir daí, os funcionários são desafiados a buscar soluções para futuras demandas. Num desses exercícios, identificaram a tendência de miniaturização. Os compressores de hoje não pesam menos de 10 quilos, mas eles desenvolveram um microcompressor do tamanho de um pincel atômico, tão fácil de transportar que serve para refrigerar roupas, como fardas militares e macacões de pilotos de corrida.
9. REPETIR E REPETIR
A cerca de 700 quilômetros de altitude da Terra, o satélite CBERS 3 utiliza uma câmera ultrapotente criada num laboratório em São Carlos, interior de São Paulo. “Se não houvesse nuvens ou a curvatura do globo, sua resolução permitiria que, aqui do meu escritório, fossem capturadas imagens de um carro em Brasília”, diz Jarbas Vasconcelos, sócio-presidente da Opto, empresa de equipamentos médicos e aeroespaciais que construiu a engenhoca. Sua estratégia é trabalhar com tecnologia de ponta aeroespacial para, mais adiante, transbordar as descobertas feitas durante as pesquisas para produtos mais simples. Nesses casos, o investimento em pesquisa já está pago. E dela vêm lasers para cirurgias médicas, lentes para óculos ou microscópios. “Os pesquisadores participam de vários projetos simultâneos para que o conhecimento possa circular pela empresa”, afirma Vasconcelos. É uma estratégia que parece um balé.
Quem compra um ingresso para um espetáculo de dança do Grupo Corpo sabe que encontrará uma assinatura: o famoso movimento em que os bailarinos jogam o quadril para trás e para frente, num contido rebolado. Ele se repete a cada espetáculo. Mas é sempre diferente. Misturado a movimentos secos e a uma música lancinante, o rebolado faz parte de um balé que remete à violência e ao caos urbano. Se usado no meio de passos delicados e fluidos, enfatiza a sensualidade. “Não existe em área nenhuma um criador que cada hora faça uma coisa diferente. É fundamental construir uma linguagem que seja reconhecida e reconhecível”, diz o coreógrafo Rodrigo Pederneiras. Ele levou uma década para construir essa identidade (o grupo existe há 37 anos). Aí começou a criar variações sobre o mesmo tema. Quem os assiste sempre os reconhece. E sempre se surpreende.
Fonte: Época Negócios

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